Legislativo Judiciário Executivo

O Parque São José, em Fortaleza, foi o único dos 121 bairros da capital a dar maioria de votos para mulheres candidatas a vereadoras nas eleições de 2020. A singularidade não acaba aqui. É de lá a vereadora Tia Francisca (PSD), eleita naquele ano pelo PL, após perder o marido para Covid-19, lidar com um princípio de depressão diante da perda pessoal e da pandemia e ser oficializada candidata sem saber do que se tratava o papel que assinou. 

Aos 63 anos na época, em sua primeira candidatura ao Legislativo, ela foi a mulher mais votada do bairro, após ser "abraçada" pela comunidade onde cresceu. "Eu ganhei deitada numa rede", relembra a vereadora. Essa trajetória é uma exceção no histórico de mulheres na política, o que expõe o desequilíbrio na disputa entre homens e mulheres nas campanhas eleitorais.

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Ainda que representem mais de 50% da população brasileira e 53,6% dos fortalezenses, a participação das mulheres da política passa longe dessa proporção. A baixa representatividade aparece já no lançamento das chapas — que normalmente cumprem apenas a cota mínima de 30% de candidaturas femininas exigida pela Justiça Eleitoral —, mas também se apresentam nas urnas, como no caso das últimas eleições municipais de Fortaleza.

Com um novo pleito se aproximando, há avanços nas ações para estimular a presença de mulheres nas urnas e garantir uma disputa competitiva com os homens, no entanto, a discrepância parece longe de chegar ao fim.

“As cotas ainda não são suficientes para mudar esse cenário do ponto de vista dos eleitores. Nós temos uma série de regulamentações que já buscam garantir isso internamente nos partidos, nas campanhas, no tempo de TV, em todas essas coisas, mas nós não conseguimos fazer essa correspondência ainda com os eleitores, então essa é uma sinalização de que algo precisa ser mudado”, aponta a socióloga e pesquisadora do Laboratório de Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC), Paula Vieira.

Os dados que reforçam esse diagnóstico estão disponíveis no Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE)A reportagem coletou os resultados das urnas de todos os bairros de Fortaleza e constatou que apenas no Parque São José, atualmente na Regional 10, as candidatas a vereadora conquistaram mais votos que os postulantes do gênero masculino em 2020. 

Esta reportagem integra uma série do Diário do Nordeste sobre o desempenho eleitoral dos candidatos a vereador de Fortaleza em 2020 e o que isso pode indicar para a disputa eleitoral em 2024.

Parque São José

Nas últimas eleições municipais, 3,6 mil pessoas votaram em sessões do bairro Parque São José, na periferia de Fortaleza. De acordo com os boletins de urnas, 1,9 mil eleitores optaram por candidaturas femininas na hora de escolher um vereador. Essa fatia representa 54% do eleitorado com votos válidos no pleito.

54%
dos votos no Parque São José em 2020 foram para mulheres que queriam ser vereadoras

A proporção no Parque São José chega a ser discrepante se comparado com o desempenho das mulheres em outros territórios. Considerando apenas os dez bairros onde elas foram mais bem votadas — com exceção do Parque São José —, esse índice cai para uma média de 30% dos votos nas urnas. Já tomando como base todos os bairros da Capital, as candidaturas femininas para o Legislativo receberam cerca de 20% dos votos.

Paula Vieira reforça que esse diagnóstico é “preocupante”. “Nós não chegamos ainda nem ao percentual mínimo que é proposto pelas cotas de candidaturas: temos 30% de candidaturas, mas não temos 30% de votos, que é o mínimo. O que temos é uma distância entre o que é esperado em relação à representação da população, tendo em vista o percentual de mulheres existentes na população”, afirma.

O cenário é ainda mais desequilibrado em bairros como Pici, Antônio Bezerra e Panamericano, onde o eleitorado destinou apenas 10% dos votos para candidaturas femininas em 2020.

'Vereadora do bairro'

No caso do Parque São José, Tia Francisca concentrou mais da metade dos votos que foram dados a candidaturas femininas no bairro. Das 1,9 mil vezes em que eleitores do local votaram em mulheres, em pouco mais de mil casos foram para digitar o número da então candidata nas urnas. 

Além dela, a ex-vereadora Bá (PP) também recebeu expressivo apoio na região, totalizando 536 votos — ainda assim, bem abaixo da candidata do PSD. Outros parlamentares, como Priscila Costa (PL), que tirou terceiro lugar no bairro, aparecem em seguida, mas com votação significativamente menor. A mandatária do PL, por exemplo, recebeu 53 votos no Parque São José.

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Conforme Paula Vieira, neste caso, o resultado das urnas retrata a força de lideranças locais. “Tia Francisca tem uma instituição que atende a comunidade há muitos anos e tem essa liderança por uma ação junto à comunidade. A campanha foi em uma época de pandemia, foi uma campanha grande dentro da localidade, com alguns conflitos com uma outra candidata, muito provavelmente a Bá, pelos votos desse território”, afirma.

“A Bá também é uma liderança no território, e é comum as lideranças mulheres acabarem, eventualmente, participando do processo eleitoral (...) São duas mulheres disputando em um território. Chama a atenção pelas duas serem as principais lideranças do território, por conta da atuação do dia a dia, do cotidiano, e como a comunidade as legítima”, acrescenta. 

Tia Francisca foi a vereadora mais votada do Parque São José em 2020
Legenda: Tia Francisca foi a vereadora mais votada do Parque São José em 2020
Foto: Érika Fonseca/Divulgação/CMFor

“Ganhei deitada numa rede”

Moradora do Parque São José há muitos anos, Tia Francisca conta que, desde a juventude, atua como liderança comunitária. Em 2020, diante da crise econômica provocada pela pandemia da Covid-19, resolveu distribuir alimentos para a população da localidade, mas acabou contaminada com o vírus. 

Em meio ao próprio quadro agravado da doença, ela ainda perdeu o marido. Segundo a vereadora, em meio às crises pessoais e da comunidade, as lideranças da região começaram a planejar o lançamento de uma candidatura. 

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“Eu sempre trabalhei para as pessoas e, como nós temos uma organização da sociedade civil, entendemos que a gente precisava de uma pessoa para nos representar e abrir mais portas dentro das políticas públicas”, conta. A ideia, inicialmente, era lançar o nome da filha, Mariane, como candidata.

“Quando fizemos uma reunião pra que eu anunciasse a nova candidatura dela, eu descobri que quem era a candidata era eu. Todos os amigos que estavam reunidos abraçaram a causa e reafirmaram que seria eu. Minha filha resolveu fazer isso porque eu estava entrando em depressão e ela viu como uma oportunidade de me tirar dessa situação”, relembra a vereadora. 

Ela levou minha ficha de pré-candidata dizendo que era a dela e que precisava da minha aprovação para validar o processo. Na verdade, eu estava assinando a minha ficha sem saber. E aí começou tudo, foi lindo ver tantas pessoas se mobilizando. E aqui eu cheguei, porque o povo quis, eles me colocaram aqui. Eu ganhei deitada numa rede.
Tia Francisca (PSD)
Vereadora de Fortaleza

A vereadora conta que a campanha foi feita “sem muita verba partidária”, com visitas de porta em porta e publicidade nas redes sociais. À época no PL, ela recebeu R$ 15 mil da legenda para a campanha. 

“Eu tinha o problema de saúde (Covid-19), até hoje eu fico sem fôlego, e tem a obesidade. Eu disse a eles que eu não tinha como fazer as caminhadas porque eu não aguentava muito, mas eles disseram: ‘Tem problema não, tia. A senhora vai no carro e a gente vai atrás, andando, caminhando, adesivando e foi assim que aconteceu’”, diz.

No quarto ano como parlamentar, a vereadora avalia que, desde 2020, as mulheres têm conquistado espaços na política, mas ainda há muito a avançar. 

“A gente já conseguiu até um espacinho legal, mas ainda está muito longe de ser o ideal. Recentemente, tivemos a marca histórica de ter a maior bancada de mulheres na Câmara de Vereadores, isso é importante, mostra que a mulher tem se posicionado e buscado ocupar mais espaços de influência na nossa sociedade”, afirma.

“Na política, a gente sofre um pouquinho, sim. Existem colegas que não respeitam a fala da gente, que querem se impor mesmo diante da nossa opinião e querem passar por cima mesmo, querem tirar nossa credibilidade pelo simples fato de sermos mulheres. Agora você imagina tudo isso muito mais intenso, porque eu sou mulher, negra e idosa”, ressalta.

Estímulo à participação feminina

Ao longo das últimas décadas, a legislação eleitoral brasileira foi implementando mecanismos para estimular a participação feminina nas disputas eleitorais e aumentar a representatividade delas nos espaços de poder.

Desde 1997, a lei eleitoral brasileira estabelece a cota mínima de 30% de candidaturas femininas nas chapas. A regra, no entanto, não “pegou” e somente em 2009 passou a ser obrigatória no País. Assim, as siglas precisam atender a um mínimo de 30% e a um máximo de 70% das candidaturas para cada sexo nas eleições para o Legislativo.

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A Justiça Eleitoral também tem fechado o cerco contra candidaturas consideradas “laranjas”, em que mulheres são lançadas — às vezes sem nem saber que estão na disputa — apenas para cumprir a cota ou desviar recursos para outros postulantes. 

Candidatas com votação zerada ou muito baixa, prestações de contas idênticas ou ausência de campanha eleitoral passaram a integrar o rol de indícios de fraude à cota de gênero pela Justiça Eleitoral na hora de impor punições às siglas, inclusive com a anulação de todos os votos das chapas, provocando a cassação de toda a bancada eventualmente eleita.

Outras ações para estimular a participação feminina foram as decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF) determinando que, ao menos 30% dos recursos dos fundos eleitoral e partidário, sejam destinados às candidaturas femininas. A mesma cota vale para o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV.

Além disso, desde 2021, cada voto recebido por mulheres e pessoas negras nas urnas é contabilizado em dobro para fins de  definição dos valores dos fundos partidário e eleitoral.